Sunday, January 6, 2008

Sobre a lei do Tabaco e o Governo a correr atrás da Europa

"Os malefícios do Tabaco


A última coisa que apetece a um fumador pachola e contentinho, com quase meio século de cadastro e dois restinhos de pulmão ao seu dispor, é ver convertida em polémica filosófica e motivo de apaixonadas doutrinas a pequenina e mecânica pulsão de puxar por um rolinho de papel, entalá-lo entre os lábios e chegar-lhe um fósforo. Olhando para trás, não tenho o remorso do crime hediondo, premeditado a frio e na minúcia, com o tresloucado objectivo de extinguir os meus contemporâneos e de me apossar das riquezas do mundo, para meu mando e desmando. Não. Vejo mais um puto que foi ao café antes de tempo e que, por entre a curiosidade e a propensão para partilhar as liturgias conviviais, se foi habituando a meter lufadas de calor nas entranhas e a achar que, ao expeli-lo, os argumentos saíam muito mais inteligentes. E, afinal, o Hemingway fazia-o, o Albert Camus também e o Bogart, esse então, era inimaginável sem o cigarro na boca. Eu não via então no tabagismo uma vocação de raça ou tribo, princípio ou credo, confraria ou partido. E o mesmo sucedia com a maioria dos meus amigos, que o curso da vida iria levando a abdicar do cigarro (ou do charuto ou do cachimbo) ao ritmo dos sustos que a saúde lhes foi pregando. Retardatário, eu aguardo ainda o meu, numa qualquer esquina que bem pode ser a próxima. Mas ainda não me apeteceu empenhar as energias - que tudo na vida requer e para tudo na vida fazem falta - na abdicação de um pequeno prazer, mesmo que feito de mero hábito e auto-sugestão.

Sei que é um vício e gosto dele: como a personagem do Wilde, resisto a tudo menos à tentação. Não me imagino, por isto, herói nem mártir. Não me pinto vítima, nem resistente. Enuncio o mais rudimentar dos porque-sins da vida quotidiana, convencido, como sempre estive, de que é nela que a felicidade se joga. E sobre esta matéria, é o que tenho para dizer ao jovem médico que vi na televisão e que, de tão louro, imberbe e feroz no discurso sanitário de apuramento da raça, me fez evocar os netos das experiências do Dr. Mengele. E aos comissários europeus politicamente excedentários, que precisam de mostrar que o seu pelouro existe, para o que se dedicam a infernizar o nosso quotidiano com minúcias em papel timbrado e um puritanismo a que chamam rigor. E também aos deputados que deixaram a lei pendente de regulamentação, sem proclamar, preto no branco, que a mesma condicionava a aplicação do diploma (não porque tal fosse tecnicamente necessário, mas porque, como a experiência ensina e a prática deste início do ano comprova, era politicamente necessário). E ao Governo e todas as instâncias que objectivamente jogam com a falta de regulamentação para levar a incerteza e o medo dos comerciantes a instalar uma situação que não é a que a lei contempla e prevê.

Porque a questão que coloco é muito simples: o legislador tem de assumir a sua lei e as suas consequências. E se a lei suscita dúvidas de interpretação - talvez precisamente por não ter sido regulamentada, nos termos em que foi anunciado - não me interessam nada as interpretações da Direcção-Geral da Saúde ou da ASAE, entidades a que não compete nem uma interpretação autêntica nem a regulamentação da lei. Pelo que os seus facultativos contributos não valem mais do que o mérito técnico que tiverem - tal como as minhas e as de qualquer paisano, fumador ou não. Pois, para além da técnica, o que está aqui em jogo é uma dimensão de liberdade individual - e, dessa, ninguém sabe tanto como o indivíduo que é dela titular.

O inaceitável é a fuga às responsabilidades. É despejar o ónus de uma aplicação maximalista da lei sobre os atarantados donos de pequenos restaurantes que, querendo optar por fumadores ou apetrechar-se para áreas com e sem fumo, têm medo de o fazer segundo a sua própria leitura do diploma e virem depois a perder o investimento realizado. Isto é uma espécie de "por agora, isto é o maximalismo irlandês, mas o brando Portugal já aí vem" (com a regulamentação). Se a lei é a que foi votada, regulamente-se e cumpra-se "como nela se contém". Se é para endurecer, que volte ao Parlamento e dê a cara. Sob as leis de Atenas, não deve haver vida espartana."

Nuno Berderode Santos, jurista

In Jornal de Notícias Domingo, 6 de Janeiro de 2008

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