Tuesday, March 30, 2010

Cinismo oculto

A propósito do Protágoras de Platão:

"Protagoras, famous for his claim that man is the measure of all things, is widely regarded as the world's first relativist and anti-foundational thinker. We learn from Plato that Protagoras also greatly admired the virtue of courage, as have later anti-foundational thinkers like Nietzsche and Heidegger. The connection between anti-foundationalism and admiration for courage seems obvious at first: to know that we cannot know the truth is a hard truth to bear and therefore requires courage or fortitude in the knower if he is to accept this truth, and if he is still to have the courage of his convictions, no matter how unfounded. Yet Plato's examination of Protagoras and his thought suggests another and unexpected relationship between Protagoras' anti-foundationalism and his admiration for courage. Plato suggests that Protagoras does not, in fact, respect courage because he is an anti-foundationalist, but rather is an anti-foundationalist because he so deeply admires the virtue of courage. Protagoras longs for a world in which great courage is both possible and necessary. The belief that we cannot know the truth, and that all of our decisions therefore involve considerable risk, makes for such a world. Therefore Protagoras subscribes to this belief and is an anti-foundationalist. His anti-foundationalism is born more of moral hope than of a clear-sighted assessment of reality, or so Plato
suggests. In my paper, I explore this intriguing Platonic assesment of Protagorean relativism and suggest that it may also apply to later anti-foundational thinkers, such as Nietzsche and Heidegger."

Mas neste caso não será o estabelecimento da ideia de que existe uma verdade, um bem absoluto, um serviço que se presta aos indecisos e desorientados de uma comunidade ou até mesmo aos predominantemente corajosos que passam por uma fase de hesitação? Platão não admitirá, implicitamente, que essa fé é o desejo de salvação daqueles que não conseguem viver com incertezas na vida? O cinismo político está ali implícito, embora ele não o queira admitir. Ele tem medo que uma civilização decline porque, no fundo, não acredita que a maioria das pessoas tenha coragem de viver na incerteza sem se desmotivar de trabalhar e lutar pela sua comunidade porque ele próprio não encontra, como nunca ninguém encontrou, argumento definitivo que motive as pessoas para tal.

Thursday, March 25, 2010

Jean-Jacques Rousseau e Friedrich Nietzsche em defesa da liberdade

por Rafael Teixeira –

ÍNDICE:

* 1. Introdução
* 2. A questão da piedade
* 3. O interesse pelo bem-estar e a vontade-de-potência
* 4. A propriedade e a vontade-de-verdade
* 5. O entregar-se unicamente ao sentimento da existência atual e o eterno retorno
* 6. Jean-Jacques Rousseau e Friedrich Nietzsche em defesa da liberdade
* 7. Bibliografia

1. INTRODUÇÃO

“… são, todos, indícios funestos de que a maioria de nossos males é obra nossa e teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza.”
(Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a desigualdade)

“Tenho como fórmula um princípio. Todo naturalismo na moral, isto é, toda sã moral, está dominada pelo instinto da vida; [...] A moral antinatural, isto é, toda moral ensinada, venerada e predicada até agora, se dirige, ao contrário, contra os instintos vitais e é uma condenação já secreta, já ruidosa e descarada desses instintos.”
(Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos)

O presente trabalho é certamente audacioso. Aproximar dois filósofos controversos e de discursos aparentemente distintos e desconexos, não pode ser considerado tarefa de pouco esforço. E, com efeito, não é.

Dentre muitas questões prévias, uma suscita particular interesse e prescreve sua resposta de antemão: com que finalidade estabelecemos paralelos entre discursos? É isso, somente, uma despretensiosa distração intelectual ou um real e proveitoso empreendimento? Não iremos tão longe. Por hora, basta que limitemos a questão ao caráter peculiar dos discursos filosóficos (e especialmente dos discursos aqui tratados) e encontraremos sua possível resposta em uma outra questão, retórica: podem filósofos livres e condizentes com a seriedade e especificidade da interrogação filosófica, afirmar quase o oposto a respeito de uma mesma realidade?

O ingênuo ou tendencioso julgo da tradição nos leva a crer que sim. Mas, já aqui, indico um ponto em comum entre Jean-Jacques Rousseau e Friedrich Nietzsche: a disposição quase imperativa em romper com a tradição.

2. A QUESTÃO DA PIEDADE

“… enquanto resistir ao impulso interior natural da comiseração, jamais fará qualquer mal a um outro homem, nem mesmo a um ser sensível, exceto no caso legítimo em que, encontrando-se em jogo sua conservação, é obrigado a dar preferência a si mesmo.”
(Jean-Jacques Rousseau, discurso sobre a desigualdade)
“E por isso o homem nobre impõe a si mesmo o dever de não envergonhar; quer ter recato perante todo o que sofre. Em verdade, não me agradam os misericordiosos, os que se comprazem na sua piedade; são demasiado faltos de pudor…”
(Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra)

Proponho aqui, uma elucidação da questão que é geralmente apontada como a principal divergência entre os dois filósofos: a questão da piedade.

De acordo com o discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de Rousseau, a repugnância natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes é um princípio da alma humana anterior à razão (o homem é, portanto, naturalmente piedoso). Nietzsche, em uma primeira e descuidada análise, afirma exatamente o oposto: a piedade é um valor inferior, um valor de escravos, contrário e até mesmo hostil aos instintos vitais. Estarão eles falando de uma mesma “piedade”?

É certo que não. Essa apressada contraposição entre os dois discursos se deve, muito provavelmente, a uma falta de clareza entre o que Rousseau atribui ao homem em seu estado de natureza, e o que Nietzsche aponta como sendo nocivo ao homem de rebanho (ao homem em seu estado civil). A piedade não pode nunca coagir em detrimento do instinto de conservação da vida no estado de natureza; a piedade, tal como Rousseau a emprega, não tem o caráter de um ato, muito menos de um dever ético: é tão somente a qualidade de não causar um dano inutilmente a um outrém, principalmente aos nossos semelhantes. É também uma objeção a representação defendida, entre muitos outros, pelo inglês Thomas Hobbes (o homem é o lobo do próprio homem quando encontra-se em seu estado primitivo): o desconhecimento da bondade não implica necessariamente na realização da maldade.

Do mesmo modo, Nietzsche condena a moral de ressentimento, de escravos, vingativa, que diz Não a um “fora”, a um “outro”, a um “não-eu”. O homem é, segundo o filósofo alemão, uma ponte para o super-homem. Deve, portanto, superar a si mesmo, e não necessariamente a um outrém.

Fica patente, portanto, que não há graves divergências entre os dois pensadores no que diz respeito a questão da piedade. Podemos prosseguir.

3. O INTERESSE PELO BEM-ESTAR E A VONTADE-DE-POTÊNCIA

“… alma humana, creio nela perceber dois princípios anteriores à razão, um dos quais interessa profundamente ao nosso bem-estar e à nossa conservação.”
(Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a desigualdade)

“O que é bom? – Tudo aquilo que desperta no homem o sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder. O que é mal? – Tudo o que nasce da fraqueza. O que é a felicidade? – A sensação de que o poder cresce, de que uma resistência foi vencida.”
(Friedrich Nietzsche, O Anticristo)

“Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto, de tudo quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem executa as suas como agente livre.” Cabe-nos aqui, analisar o argumento acima, retirado do discurso sobre a desigualdade, de Rousseau, e estabelecer uma relação com a concepção de vontade-de-potência em Nietzsche.

Não incidiremos aqui em um erro muito comum presente em diversas interpretações da obra de Nietzsche: reduzir a significação de vontade-de-potência a uma pré-ocupação com a conservação da vida. A significação de vontade-de-potência é certamente muito maior.

Neste ponto, exponho a principal divergência (essa sim, uma real divergência) entre os dois pensadores: a faculdade do homem de aperfeiçoar-se. Mas é essa divergência, ao mesmo tempo, um importante ponto em comum: ambos reconhecem no homem a liberdade e a capacidade de criação, de aperfeiçoar-se. O desacordo está, pois, não nas faculdades que são admitidas em ambos os discursos como constitutivas da natureza humana, e sim no valor que é atribuído a cada uma delas.

No discurso sobre a desigualdade, a faculdade do homem de aperfeiçoar-se, distintiva e quase ilimitada, é indicada como a fonte de todos os males. É o desenvolvimento das paixões e das indústrias da “máquina humana” que estabelece uma relação de dependência com o mundo e desvia-a de suas necessidades naturais. Em oposição, o filósofo alemão reconhece na capacidade de auto-superação o princípio fundamental do homem e o destino de sua existência como realização de sua vontade-de-potência. O homem é um meio. É preciso, portanto, que seja superado, que se sobreponha a suas fraquezas, em busca de seu fim: o super-homem.

De qualquer modo, fica implícita a interrogação da qual nos ocuparemos daqui em diante, até o final deste trabalho: é o homem no estado de natureza, interessado somente pelo seu bem-estar e pela sua conservação, tal como Jean-Jacques Rousseau o descreve em seu discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, mais próximo de se tornar um além-do-homem? Soube a espécie humana, no decorrer de sua existência, fazer bom uso dessa faculdade de aperfeiçoar-se, dessa sua capacidade de criação? Eis aqui uma questão que suscita muitas outras. Mas não convém, aqui, irmos tão longe.

“… e logo reconhecereis qual a vantagem de sempre ter todas as forças à sua disposição, de sempre estar pronto para qualquer eventualidade e de transportar-se, por assim dizer, sempre todo inteiro consigo mesmo.” Destacamos aqui uma qualidade comum ao homem em estado de natureza e ao super-homem idealizado por Nietzsche: a obediência única aos seus instintos e, portanto, a ausência de qualquer sujeição a um outrém.

Não nos cabe aqui, examinar se é o homem que obedece somente a si mesmo inteiramente livre ou não. É suficiente que se torne explícita a condição de dependência a qual o homem é levado quando é submetido a moral de rebanho, quando é, por fim, domesticado (os dois autores empregam este termo). É natural que a sociedade (não entenda-se aqui sociedade no sentido lato da palavra) seja hostil aos instintos vitais e até mesmo a conservação da espécie humana. É natural que a sociedade seja hostil ao próprio homem.

4. A PROPRIEDADE E A VONTADE-DE-VERDADE

“… pode-se imaginar como escaparam a homens que só julgavam as coisas pelo primeiro aspecto. [...] Como teriam podido, por exemplo, imaginar ou compreender as palavras matéria, espírito, substância, moda, figura, movimento,umas vez que [...] as idéias relativas a tais palavras, sendo puramente metafísicas, não se poderiam encontrar delas qualquer modelo na natureza? ”
(Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a desigualdade)

“’O mundo-verdade e o mundo-aparência’ – essa antinomia é reconduzida por mim a relações de valores. Projetamos nossas condições de conservação como atributos de ser em geral. O fato de que, para prosperar, impõe-se a estabilidade em nossa crença, levou-nos a afirmar que o ‘mundo-verdade’não é mutável e flutuante no devir, mas que ele é o ser.”
(Friedrich Nietzsche, Vontade de potência)

Arriscaremos, de início, uma afirmação: O homem no estado de natureza não tem vontade-de-verdade. Mas o que é a vontade-de-verdade? O que no homem sente vontade-de-verdade? Respondo: tudo o que foge ao que há de mais natural, tudo o que é contrário ao devir que constitui a nossa existência. A vontade-de-verdade é a objeção do homem à sua própria natureza.

Naturalmente, o homem no estado de natureza não tem vontade-de-verdade. A verdade ainda não ganhou substancialidade, não é entendida como coisa-em-si. É, pois, tudo o que aparece, tudo o que se mostra, tudo o que é aspecto. O engodo da substância, da coisa-em-si, ainda não o iludiu. O homem no estado de natureza sabia viver.

Em que momento de sua existência o homem conspirou insidiosamente contra sua natureza? Em que momento, segundo as palavras de Jean-Jacques Rousseau, foi comprada uma “tranquilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real”? No momento em que o homem deixou de ser homem. No momento em que sentiu-se fraco e vulnerável, disse não a si mesmo e à sua natureza e, ressentido, amaldiçoou o devir e excogitou: “Isso é!” Nascia, assim, a vontade-de-verdade como uma pretensa posse de toda a realidade. Nascia a propriedade como realização de uma vontade-de-verdade.

5. O ENTREGAR-SE UNICAMENTE AO SENTIMENTO DA EXISTÊNCIA ATUAL E O ETERNO RETORNO

“Sua alma, que nada agita, entrega-se unicamente ao sentimento da existência atual sem qualquer idéia do futuro, ainda que próximo, e seus projetos, limitados como suas vistas, dificilmente se estendem até o fim do dia.”
(Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a desigualdade)

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência’ – [...] Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal em que lhe responderias: ‘Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!’”
(Friedrich Nietzsche, A gaia ciência)

Retomaremos a questão que, aparentemente, foi esquecida em “O interesse pelo bem-estar e a vontade-de-potência”: é o homem no estado de natureza, interessado somente pelo seu bem-estar e pela sua conservação, tal como Jean-Jacques Rousseau o descreve em seu discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, mais próximo de se tornar um além-do-homem? Soube a espécie humana, no decorrer de sua existência, fazer bom uso dessa faculdade de aperfeiçoar-se, dessa sua capacidade de criação?

Com efeito, a questão não foi esquecida e nem colocada em segundo plano. Estamos a caminho de sua resposta. No entanto, resta ainda uma última e fundamental questão: o tempo como propriedade.

O homem em estado de natureza, idealizado por Rousseau, não possui previdência, entrega-se unicamente ao sentimento da existência atual. É o exemplo do Caraíba, que “de manhã vende o colchão de algodão e de tarde chora, querendo readquiri-lo, por não ter previsto que na noite seguinte necessitaria dele.”

Somente com a negação à vida e com a vontade de se instituir posse de toda a realidade, o tempo foi substancializado e suposto como propriedade do homem. Antes disso, fazendo uso das palavras do filósofo de Genebra, “sua imaginação nada lhe descreve, o coração nada lhe pede.” A espécie humana encontrava tudo o que suas necessidades lhes prescrevia.

O mito do eterno retorno é a fórmula de aceitação incondicional à vida, é a fórmula que elimina o “não à vida” e impõe que cada instante seja vivido, afirmado como único, do mesmo modo que fazia o “homem primitivo”.

O homem em estado de natureza está sendo. Não se ilude que foi, que será ou que possa ser. Que infeliz acaso levou o homem a cultivar esperanças por um futuro incerto e ressentimentos por um passado que não mais existe? No momento em que o homem amaldiçoou o devir e excogitou “isso é!”, amaldiçoou também sua existência e a de toda a espécie humana. Julgou-se liberto de sua natureza, mas, no entanto, só encontrava grilhões.

É possível que já tenhamos o suficiente para que arrisquemos uma provisória resposta à nossa questão. Com efeito, não será essa uma decisiva resposta: o desenvolvimento de nossa interrogação já alcançou o ponto em que a resposta é quase uma inconveniencia, uma estupidez. Talvez já nem mesmo a nossa questão tenha tanto sentido quanto antes. Em todo caso, alguma coisa ainda tem vontade-de-verdade.

6. JEAN-JACQUES ROUSSEAU E FRIEDRICH NIETZSCHE EM DEFESA DA LIBERDADE

“O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se, agita-se, atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre no seu encalço para colocar-se em situação de viver ou renunciar à vida para adquirir a imortalidade; corteja os grandes, que odeia, e os ricos, que despreza; nada poupa para obter a honra de servi-los; jacta-se orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção deles, e, orgulhoso de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que não gozam a honra de partilhá-la.”
(Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a desigualdade)

“Eu vos apresento o Super-homem! O Super-homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super-homem, o sentido da terra. Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar em que vos fala de esperanças supraterrestres. São envenenadores, quer o saibam ou não. Não dão o menor valor à vida, moribundos que estão, por sua vez envenenados, seres de que a terra se encontra fatigada; vão se por uma vez!”
(Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra)

Retomo então, novamente, à questão que aqui vem sendo discutida, desta vez com o intuito de concluir o presente trabalho com sua provisória resposta: é o homem no estado de natureza, interessado somente pelo seu bem-estar e pela sua conservação, tal como Jean-Jacques Rousseau o descreve em seu discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, mais próximo de se tornar um além-do-homem? Soube a espécie humana, no decorrer de sua existência, fazer bom uso dessa faculdade de aperfeiçoar-se, dessa sua capacidade de criação?

O homem, a patir do momento em que deixou de ser homem, só encontrou (criou) grilhões. Decidiu-se pelo caminho da tranquilidade imaginária e do ilusório “cerco” à natureza (entendida aqui como “physis”), estabelecendo uma relação de posse, de propriedade com o devir, mesmo que, para isso, fosse preciso enganar-se e renegar sua real liberdade. Esqueceu-se de que é ele também natureza, physis, e tornou-se posse de suas abstrações.

Em oposição, o homem em seu estado de natureza ainda não foi submetido a engodos e é, pois, livre para superar-se em busca não de um erro, de uma quimera, mas do além-do-homem, do homem que diz sim à cada instante de sua vida e entrega-se unicamente ao sentimento da existência atual. É preciso “aprender” com o homem primitivo, com o real e único homem. O homem no estado de natureza sabe viver.

Jean-Jacques Rousseau e Friedrich Nietzsche, concluímos, não afirmavam o oposto e nem tinham discursos tão distantes quanto se imagina. Quando se estabelece um paralelo entre os dois filósofos, desvela-se pelo menos um fundamental ponto em comum: o amor à liberdade (à natureza) que impõe a necessidade de se romper com a tradição (grilhões).

“Por que fitas-me assim, oh! caveira incolor?
Teu cérebro, qual meu, outrora divagava,
Buscando a luz do dia e da aurora o esplendor
E almejando a Verdade, em erros mergulhava!
Até vós, instrumentos, escarneceis agora,
Campânulas, cilindros, rodas e retorta.
Eu a entrada a forçar, vós sois a chave, embora,
Que ao trinco não se ajusta e nunca abre a porta.
Coberta de mistério, assim, em plena luz,
A Natura não tira os seus véus nevoentos.
Se nunca revelou o que a alma seduz,
Arrancar-lhe não podes com tais instrumentos.”

(Johann Goethe, Fausto)

7. BIBLIOGRAFIA:

ROUSSEAU, Jean-Jacques, <>Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1999;
NIETZSCHE, Friedrich, Assim falava Zaratustra, Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1981;
NIETZSCHE, Friedrich, Vontade de potência, Tradução de Mário D. Ferreira Santos. Rio de Janeiro, Ed. Ediouro, 1988;
NIETZSCHE, Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos, Tradução de Edson Bini e Márcio Pugliesi. Rio de Janeiro, Ed. Ediouro, 1988;
NIETZSCHE, Friedrich, O anticristo, Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2003;

Thursday, March 11, 2010

Smooth Operators

Nietzsche:

"Eu li a Bíblia de capa a capa. Chamar aquele livro de ‘a palavra de Deus’ é um insulto a Deus. Chamar aquele livro de um guia moral é uma afronta à decência e dignidade dos povos. Chamá-lo de guia para a vida é fazer uma piada de nossa existência. E pretender que ela seja a verdade absoluta é ridicularizar e subestimar o intelecto humano"

“Má compreensão do sonho. – Nas épocas de cultura tosca e primordial o homem acreditava no sonho conhecer um segundo mundo real; eis a origem de toda metafísica. Sem o sonho, não teríamos achado motivo para uma divisão do mundo. Também a decomposição em corpo e alma se relaciona à antiqüíssima concepção do sonho, e igualmente a suposição de um simulacro corporal da alma, portanto a origem de toda crença nos espírito e também, provavelmente, da crença nos deuses: ‘Os mortos continuam vivendo, porque aparecem em sonho aos vivos’: assim se raciocinava outrora, durante muitos milênios"

"Somente uma coisa é necessária’... Que todo homem, por possuir uma ‘alma imortal’, tenha tanto valor quanto qualquer outro homem; que na totalidade dos seres a ‘salvação’ de todo indivíduo um possa reivindicar uma importância eterna; que beatos insignificantes e desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são constantemente transgredidas em seu favor – não há como expressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda espécie de egoísmos ad infinitum, até a insolência. E, contudo, o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a essa deplorável bajulação de vaidade pessoal – foi assim que seduziu ao seu lado todos os malogrados, os insatisfeitos, os vencidos, todo o refugo e vômito da humanidade. A ‘salvação da alma’ – em outras palavras: ‘o mundo gira ao meu redor’..."


"Se o cristianismo tivesse razão em suas teses acerca de um Deus vingador, da pecaminosidade universal, da predestinação e do perigo de uma danação eterna, seria um indício de imbecilidade e falta de caráter não se tornar padre, apóstolo ou eremita e trabalhar, com temor e tremor, unicamente pela própria salvação; pois seria absurdo perder assim o benefício eterno, em troca da comodidade temporal. Supondo que se creia realmente nessas coisas, o cristão comum é uma figura deplorável, um ser que não sabe contar até três, e que, justamente por sua incapacidade mental, não mereceria ser punido tão duramente quanto promete o cristianismo"

Sebastian Fauré:

"Foste vós que, primeiramente, afirmastes a existência de Deus; deveis, pois, ser os primeiros a pôr de parte vossas afirmações. Sonharia eu, alguma vez, com negar a existência de Deus, se vós não tivésseis começado a afirmá-la? E se, quando eu era criança, não me tivessem imposto a necessidade de acreditar nele? E se, quando adulto, não tivesse ouvido afirmações nesse sentido? E se, quando homem, os meus olhos não tivessem constantemente contemplado os templos elevados a esse Deus? Foram as vossas afirmações que provocaram as minhas negações. Cessai de afirmar que eu cessarei de negar".
(esta é a minha preferida pois é a melhor maneira de explicar porque sou ateu)

Freud:

"A humanização da natureza deriva da necessidade de pôr fim à perplexidade e ao desamparo do homem frente a suas forças temíveis, de entrar em relação com elas e, finalmente, de influenciá-las. (...) O homem primitivo não tem escolha, não dispõe de outra maneira de pensar. É-lhe natural, algo inato, por assim dizer, projectar exteriormente sua existência para o mundo e encarar todo acontecimento que observa como manifestação de seres que, no fundo, são semelhantes a ele próprio"

"... [a religião é] um sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explicam os enigmas deste mundo com perfeição invejável e que, por outro lado, lhe garantem que uma Providência cuidadosa velará por sua vida e o compensará, numa existência futura, de quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui. O homem comum só pode imaginar essa Providência sob a figura de um pai ilimitadamente engrandecido. Apenas um ser desse tipo pode compreender as necessidades dos filhos dos homens, enternecer-se com suas preces e aplacar-se com os sinais de seu remorso. Tudo é tão patentemente infantil, tão estranho à realidade, que, para qualquer pessoa que manifeste uma atitude amistosa em relação à humanidade, é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de superar essa visão da vida. Mais humilhante ainda é descobrir como é vasto o número de pessoas de hoje que não podem deixar de perceber que essa religião é insustentável e, não obstante isso, tentam defendê-la, item por item, numa série de lamentáveis actos retrógrados"

"Os que não padecem desta neurose (religiosidade) talvez não precisem de intoxicante para amortecê-la. Encontrar-se-ão, é verdade, numa situação difícil. Terão de admitir para si mesmos toda a extensão de seu desamparo e insignificância na maquinaria do universo; não podem mais ser o centro da criação, o objeto de eterno cuidado de uma Providência beneficente. Estarão na mesma posição de uma criança que abandonou a casa paterna, onde se achava tão bem instalada e tão confortável. Mas não há dúvidas que o infantilismo está destinado a ser superado. Os homens não podem permanecer crianças para sempre; têm de, por fim, sair para a vida ‘hostil’"
(uma forma mais suave de perceber a exaltação da "Guerra" do Zaratrustra de Nietzsche)

E agora, Voltaire, um deísta:

"[Christianity] is assuredly the most ridiculous, the most absurd and the most bloody religion which has ever infected this world. Your Majesty will do the human race an eternal service by extirpating this infamous superstition, I do not say among the rabble, who are not worthy of being enlightened and who are apt for every yoke; I say among honest people, among men who think, among those who wish to think. … My one regret in dying is that I cannot aid you in this noble enterprise, the finest and most respectable which the human mind can point out."

* Voltaire, Letters of Voltaire and Frederick the Great (New York: Brentano's, 1927), transl. Richard Aldington, letter 156 from Voltaire to Frederick, 5 January 1767.