Sunday, January 24, 2010

Vontade

"Os filósofos gostam de falar da vontade como se fosse a melhor coisa conhecida do mundo. Schopenhauer deu a entender inclusive que a vontade é algo que realmente distinguimos, algo perfeitamente reconhecido, sem demasia e sem falta, mas parece-me que Schopenhauer, neste como em outros casos seguiu a mesma rota que todos os filósofos: adoptou e exagerou ao máximo um . preconceito popular. A vontade se me apresenta antes de mais nada, como algo complexo, algo que não possui outra unidade que seu nome e nesta unicidade de nome é precisamente onde encontra seu fundamento o preconceito que enganou a prudência sempre muito deficiente dos filósofos. Sejamos, pois, mais discretos, menos filósofos e admitamos que em cada vontade existe, antes de mais nada uma infinidade de sentimentos: o do estado do qual se quer sair, o do estado ao qual se tende, a sensação destas duas direcções, ou seja "daqui" — "até lá"; enfim, uma sensação muscular que, sem chegar a pôr em movimento braços e pernas, toma parte dele assim que nos dispomos a "querer". Do mesmo modo que o sentir, um sentir multíplice, é evidente que um dos componentes da vontade, contém também um "pensar", em todo ato voluntário há um pensamento director e portanto, deve-se evitar a crença que se pode afastar esse pensamento do “querer” para obter um precipitado que continuaria sendo vontade. Em terceiro lugar a vontade não é apenas um conjunto de sensações e pensamentos, mas também e antes de tudo um estado afetivo, a emoção derivada do mando, do poderio. O que se chama "livre arbítrio" é essencialmente o sentimento de superioridade que se sente ante um subalterno. "Eu sou livre, ele deve obedecer", eis o que há no fundo de toda vontade, a certeza íntima que constitui o estado de ânimo de quem manda. Querer significa ordenar a algo em si mesmo que obedece ou, pelo menos, é considerado como obediente. Mas observemos agora a própria essência da vontade, essa coisa tão complexa para a qual o vulgo usa apenas uma palavra. Se fôssemos a um só tempo, aquele que manda e o que obedece, sentiríamos ao obedecer a impressão de que estávamos sendo obrigados, pressionados e simultaneamente impulsionados a resistir ao movimento, impressões que sequem imediatamente ao ato da volição; porém na medida em que, por outro lado, temos o costume de não fazer caso dessa ambivalência, de enganar-nos a seu respeito graças ao conceito sintético do eu", toda uma cadeia de conclusões errôneas e conseqüentemente, de falsas apreciações da vontade também se ligam ao querer. Como quem acredita de boa fé que basta querer para atuar, assim, na maioria dos casos, alguém se contentou em querer e como também se deve esperar o efeito da ordem, isto é, a obediência, o cumprimento do ato prescrito, a aparência se traduz pelo sentimento de que o ato deveria se produzir necessariamente. Em outras palavras, aquele que quer, acredita que querer e fazer se resumem numa única coisa. Para ele o êxito e a execução do querer são efeitos do próprio querer e esta crença torna mais forte o sentimento de poder, que ele sente, e que o êxito traz como companheiro. O "livre arbítrio": esta é a designação desse complexo estado de prazer do homem que quer, que manda, e que, ao mesmo tempo, se confunde com o que executa, gozando assim o prazer de superar obstáculos com a idéia de que é sua própria vontade que triunfa sobre as resistências. Assim pois, o ato voluntário soma, deste modo, ao prazer de dar uma ordem, o prazer do instrumento que o executa com êxito; à vontade são acrescentadas vontades "subalternas", almas subalternas e dóceis, pois nosso corpo não é mais que a habitação de muitas almas. L'effet c'est moi: acontece aqui o mesmo que em toda coletividade feliz e bem organizada; a classe dirigente se apropria dos êxitos da coletividade. Em todo querer se trata simplesmente de mandar e de obedecer dentro de uma estrutura coletiva complexa, constituída, como já disse, por "muitas almas". Portanto o filósofo deveria considerar o querer a partir do ângulo da moral, a moral como conceito de uma ciência dominante. Donde brota o fenômeno da vida."

Para Além do Bem e do Mal, Nietzsche

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